Em um pacote de medidas com o objetivo de aumentar a arrecadação e diminuir o déficit fiscal, o Ministério da Fazenda anunciou nesta quinta-feira (12/1) uma nova transação tributária, a volta do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e mudanças no instituto da denúncia espontânea. Ainda, foram formalizadas a retirada do ICMS do cálculo dos créditos de PIS e Cofins e alterações recursais na esfera administrativa.
As mudanças constam em três MPs, três decretos e uma portaria, que ainda não foram publicadas no Diário Oficial. A expectativa da Fazenda é, em 2023, sair de um déficit fiscal de R$ 231,55 bilhões para um resultado positivo de R$ 11,13 bi.
Litígio Zero
Uma das principais medidas para a redução da litigiosidade anunciada nesta quinta é o lançamento do Programa de Redução de Litigiosidade Fiscal, que ficará aberto de 1º de fevereiro a 31 de março. Trata-se de uma transação tributária voltada a débitos em debate na esfera administrativa.
Pessoas físicas e micro e pequenas empresas terão os maiores benefícios no programa. Para esses contribuintes, a transação prevê desconto de 40% a 50% sobre o valor total do débito, o que incluiu o tributo em si, os juros e as multas.
Os contribuintes terão até 12 meses para pagar. De acordo com o texto, a possibilidade de entrada no programa para esse público independe da classificação da dívida ou da capacidade de pagamento.
Ainda, de acordo com Robinson Barreirinhas, Secretário Especial da Receita Federal, para esses contribuintes será permitida a inclusão de débitos inscritos em dívida ativa, ou seja, que já saíram da esfera administrativa.
Já as demais pessoas jurídicas e contribuintes com débitos superiores a 60 salários mínimos poderão ter redução de até 100% sobre o valor dos juros e multas e parcelar débitos em até 12 vezes. As diminuições nos juros e multas, porém, são restritas aos débitos irrecuperáveis e de difícil recuperação.
Ainda, esses contribuintes poderão utilizar prejuízo fiscal e base de cálculo negativa de CSLL para quitar entre 52% e 70% do débito.
Com a medida, a Fazenda espera a solução de 30 mil processos no Carf, o que corresponderia a mais de R$ 720 milhões. Nas DRJs seriam extintos cerca de 170 mil processos, envolvendo quase R$ 3 bilhões.
O pacote ainda inclui benefícios para quem fizer a chamada denúncia espontânea, instituto por meio do qual o contribuinte confessa e paga o débito, com juros e multa, antes que seja instaurado processo administrativo ou medida de fiscalização.
A novidade é que o contribuinte poderá regularizar os débitos mesmo com o procedimento fiscalizatório já iniciado, aproveitando o desconto de 100% nas multas de ofício e mora previsto para quem faz denúncia espontânea. A oportunidade estará aberta até 30 de abril.
De acordo com apresentação feita nesta quinta pelo Ministério, com as medidas de incentivo à redução de litigiosidade no Carf e incentivo à denúncia espontânea, a pasta espera arrecadar R$ 50 bilhões.
Para Vivian Casanova, do BM&A Advogados, em especial a denúncia espontânea pode chamar a atenção dos contribuintes. “[Na transação tributária] não parece ter muita novidade, considerando que é uma hipótese de transação que parece estar alinhada com a Lei que já existe. Precisamos aguardar como vem a regulamentação”, afirmou.
Retorno do voto de qualidade
O Ministério da Fazenda confirmou o retorno do voto de qualidade no Carf, alterando novamente o método de desempate dos julgamentos. Em 2020, a metodologia havia sido substituída pelo desempate pró-contribuinte por meio da Lei 13.988.
Antes dessa lei, o voto de qualidade favorecia na maioria das vezes a União por prever, em casos de empate, um voto duplo para o presidente da turma, que, por definição, é um representante do fisco. Na época, a mudança desagradou a Receita e era vista como uma fonte de perda de arrecadação.
Com o desempate pró-contribuinte, teses relevantes no Carf foram revertidas a favor das empresas. O contribuinte passou a vencer na Câmara Superior, instância máxima do Carf, processos envolvendo teses jurídicas em que antes perdia.
O ministro Fernando Haddad afirmou que durante sua vigência o desempate pró-contribuinte levou a uma perda arrecadatória de R$ 60 bilhões anuais. “Temos dois anos de trágicos resultados. Foram R$ 60 bilhões de reais por ano, perdidos, em função da paridade e do voto a favor do contribuinte, dois anos de julgamentos que não observaram o interesse da sociedade”, declarou.
O advogado Caio César Morato, do Rayes e Fagundes Advogados Associados, criticou a associação do Carf à perda de arrecadação. Morato afirmou que é “equivocado” ver o tribunal administrativo como um órgão arrecadatório.
“Chama a atenção o equivocado entendimento no sentido de que o Carf é um órgão de arrecadação, indicando valores que deixaram de ser recolhidos no período mais recente. O Carf é um conselho administrativo, independente da Receita Federal, responsável pela revisão, de forma imparcial, dos lançamentos tributários realizados por fiscais, em razão de recursos administrativos apresentados pelos contribuintes”, afirmou.
Durante a apresentação, Haddad também citou entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU) recomendando o fim do modelo paritário do Carf. O TCU publicou os Acórdãos 1076/2016 e 336/2021, que tratam de auditorias operacionais no órgão — o primeiro em decorrência da Operação Zelotes e o segundo para avaliação de eficiência. O ministro da Fazenda disse ainda que houve “recomendação de ministros de Tribunais Superiores” no sentido de retomar o voto de qualidade.
Em diversos momentos, Haddad e o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, também defenderam o fim da paridade do Carf, alegando que poucos países possuem tribunais administrativos formados por representantes empresariais.
A crítica, porém, é questionada por especialistas na área. Carla Novo, advogada no Mannrich e Vasconcelos Advogados e pesquisadora no Insper, afirma que o instituto comparou, em 2021, o modelo do Brasil com o de outros sete países. “Nossa conclusão é de que não é suficiente comparar somente a existência ou não de paridade nos tribunais, ou mesmo sua estrutura, pois isso desconsidera o todo. Muitos outros países têm instrumentos de pré-contencioso, ferramentas de resolução amigável de litígio já estruturadas e implementadas há muito tempo”, afirma.
Durante a coletiva desta quinta, o ministro Fernando Haddad e o Secretário da Receita responsabilizaram o desempate pró-contribuinte pelo aumento de estoque do Carf, que chegou a R$ 1 trilhão em 2022. Barreirinhas salientou que a suspensão dos julgamentos do conselho por conta da pandemia auxiliou na elevação, mas houve uma opção por não julgar casos que poderiam ter jurisprudência alterada por conta da metodologia de desempate.
“Há uma série, de fato, de fatores [para o aumento de estoque]. Houve sim a questão da pandemia, mas houve fortemente, por uma questão de política interna, depois de 2020, com o [fim] do voto de qualidade, se promover o julgamento de outros temas que não levassem tanto ao risco de reversão, e mesmo assim houve muita reversão [de teses]”.
Juntamente ao fim do desempate pró-contribuinte, Haddad anunciou que a Fazenda Nacional poderá recorrer à Justiça caso seja derrotada no Carf. Atualmente, embora o contribuinte possa recorrer ao Judiciário após derrota no tribunal administrativo, se a Fazenda perde, o contencioso é encerrado.
Barreirinhas apontou que o recurso à Justiça seria possível em situações excepcionais e argumentou que decisões do Carf que contrariem decisões judiciais se encaixam nessa exceção.
“Aqui nós temos uma situação excepcional. Temos teses favoráveis ao fisco, consolidadas, por exemplo, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e uma decisão administrativa em sentido contrário. Entendemos que nessa situação é sim possível que a Procuradoria leve a questão ao Judiciário”, disse.
Ao JOTA, porém, uma fonte do governo afirmou que a princípio o pacote de medidas anunciado nesta quinta não contempla nenhuma mudança específica sobre esse tema.
A Fazenda elencou 19 temas que os contribuintes estavam ganhando no Carf e perdendo no Judiciário. Entre eles, estão teses como a trava de 30% na extinção da pessoa jurídica, a tributação sobre planos de stock options e a PLR paga a diretores.
Judicialização
Para advogados e conselheiros do Carf, a mudança via medida provisória poderia ser questionada judicialmente por não cumprir pelo menos um dos requisitos para a edição de uma MP: o de urgência da matéria. Outro fator complicador seria que o STF ainda está discutindo a constitucionalidade do artigo que prevê o desempate pró-contribuinte.
Em março do ano passado, a Corte começou a julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6403, 6399 e 6415, que questionam a regra, mas o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques quando o placar estava em 5×1 para considerar válida a mudança legislativa no critério de desempate do Carf.
Outras mudanças no Carf
Ainda como forma de reduzir o estoque de processos, o governo anunciou o fim do recurso de ofício (recurso automático ao Carf quando o Fisco perde a discussão na Delegacia da Receita) para valores abaixo de R$ 15 milhões. Hoje, o limite é R$ 2,5 milhões.
Com a mudança, quando o contribuinte vencer um processo de até R$15 milhões, a discussão será encerrada. Segundo a Fazenda, isso levará à extinção automática de mais de mil processos no Carf, no valor de quase R$ 6 bilhões.
Além disso, o Ministério da Fazenda anunciou o aumento do limite de alçada para que os processos cheguem ao Carf. Atualmente, processos envolvendo valores até 60 salários-mínimos são julgados definitivamente nas delegacias da Receita Federal, sem recurso ao tribunal administrativo. Esse limite agora será de mil salários mínimos.
Conforme a Fazenda, a mudança vai possibilitar uma redução de cerca de 70% no volume de processos que chegam ao Carf, mas que representam menos de 2% do valor total do estoque.
Para Carlos Augusto Daniel, sócio do Daniel e Diniz Advocacia Tributária, a medida é “excessiva” e pode ser questionada judicialmente. “O corte para julgamento exclusivo nas DRJs, de mil salários-mínimos, nos parece excessivo e vai gerar questionamentos, especialmente à luz da jurisprudência do STF, que reconhece o direito ao recurso como inerente ao processo administrativo”, avaliou.
A advogada Maria Danielle Rezende de Toledo, sócia do Lira Advogados, afirma que a mudança tem grande impacto para os contribuintes, que preferem discutir o débito na esfera administrativa devido à suspensão da exigibilidade enquanto dura o contencioso.
“O valor para acesso ao Carf subiu consideravelmente e vai impactar nos contribuintes em geral. O contencioso administrativo, na maioria dos casos, implica em suspensão da exigibilidade automaticamente, sem apresentação de garantia. Por isso, é preferência dos contribuintes. Para discutir judicialmente, além de custas processuais, o contribuinte precisa de garantia, o que onera muito”, afirmou.
Fim da inclusão do ICMS nos créditos de PIS/Cofins
As medidas ainda incluem o fim da possibilidade de incluir o ICMS no cálculo dos créditos de PIS/Cofins. O Ministério da Fazenda afirma que o impacto positivo nos cofres públicos com a redução no creditamento será de R$30 bilhões.
A dúvida sobre a inclusão ou não do ICMS no cálculo dos créditos de PIS e Cofins surgiu após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do RE 574706 (Tema 69), em 2017. No caso que ficou conhecido como a “tese do século”, o STF definiu que o ICMS não integra a base de cálculo do PIS e da Cofins, uma vez que que não se incorpora ao patrimônio do contribuinte e não caracteriza receita, mas constitui mero ingresso no caixa e tem como destino os cofres públicos.
Uma vez que o ICMS foi excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins, começou a se discutir se o imposto poderia ser incluído no cálculo dos créditos das contribuições pelo adquirente das mercadorias. Publicada após a decisão do STF, a Instrução Normativa (IN) 2.121/2022 definiu, no artigo 171, inciso II que o ICMS incidente na venda pelo fornecedor poderá ser incluído no cálculo dos créditos de PIS e Cofins.
Contudo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou nesta quinta-feira (12/01) que a forma como a decisão do STF foi operacionalizada em relação aos créditos de PIS/Cofins implicou em uma dedução em duplicidade do ICMS.
“Você tira [o ICMS] para calcular o PIS/Cofins, mas aquele que recebe a nota fiscal se credita do total [da nota fiscal], e não do que foi efetivamente recolhido. O crédito [de PIS/Cofins] é o valor recolhido, não o valor da alíquota sobre a nota fiscal incluído o ICMS. Senão, você está se creditando duas vezes”, afirmou. Segundo ele, o governo está adotando uma medida “reparadora” ao esclarecer como deve ser o creditamento, já que teria havido prejuízo da ordem de R$65 bilhões em 2022.
Segundo a advogada Maria Danielle Rezende de Toledo, do Lira Advogados, o governo busca aplicar a mesma sistemática para o vendedor, que exclui o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, e o adquirente das mercadorias, que toma os créditos de PIS/Cofins sobre o valor da nota fiscal.
“Me parece que o Ministro quer a mesma sistemática para quem compra e quem vende. Um único regime, porque considera distorção o sistema de crédito ser diferente do de débito. No meu sentir, são situações diferentes, com controles diferentes, porque, ao crédito, está atrelada a entrada [da mercadoria], o meu gasto para aquisição. Ao débito, está atrelado meu faturamento, o que eu recebo quando vendo ou presto serviço”, afirmou.
O advogado Carlos Augusto Daniel, sócio do Daniel e Diniz Advocacia Tributária, afirma que, com a exclusão do ICMS dos créditos de PIS/Cofins, o governo passa a estar alinhado com a decisão do STF no Tema 69.
“Se a parcela do preço composta pelo ICMS não está sujeita ao PIS/Cofins, pelo princípio da não cumulatividade, ela não deveria gerar crédito na entrada [para o adquirente]. Entendo que uma alteração no sentido de excluir o ICMS dos créditos de PIS/Cofins estará alinhada com o princípio da não cumulatividade e com as diretrizes conceituais fixadas pelo STF”, afirmou.
Revogação da redução de PIS/Cofins sobre receitas financeiras
O Decreto 11.374/2023, que retomou o patamar das alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras no início deste ano, consta como uma das medidas para melhorar o resultado fiscal. Segundo apresentação da Fazenda, a estimativa é de receita de R$ 4,4 bilhões em 2023 e R$ 6,01 bilhões em 2024.
O decreto foi publicado no dia 2 de janeiro, revogando a redução das alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras feita pelo governo anterior no dia 30 de dezembro de 2022. O normativo, que alterou as alíquotas sobre as receitas auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativa, causou uma discussão sobre o cumprimento da noventena, como mostrou o JOTA.
No penúltimo dia do mandato, o ex-vice-presidente e então presidente em exercício, Hamilton Mourão, assinou o Decreto 11.322/22 que reduziu as alíquotas de PIS/PASEP e Cofins sobre as receitas financeiras para 0,33% e 2%, respectivamente. A mudança significou um corte pela metade dos patamares anteriores, de 0,65% e 4%. A medida afetava também as receitas decorrentes de operações para fins de hedge.
A redução seguida pela revogação do decreto causou uma discussão sobre a observância da noventena. O artigo 150, inciso III, alínea c da Constituição Federal, veda a União de cobrar tributos antes de decorridos 90 dias da data da publicação de norma que os instituiu ou aumentou.
No entanto, o texto do decreto apenas revoga a normativa anterior e determina a entrada em vigor no dia da publicação. Advogados ouvidos pelo JOTA ressaltam a possibilidade de questionamentos na Justiça por meio de mandados de segurança para esclarecer a situação.
O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, disse que a questão da noventena está sendo analisada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para que haja segurança jurídica para todos e ressaltou que é uma discussão complexa. Segundo ele, a questão será respondida “muito em breve”.
De acordo com ele, a anterioridade é para evitar que o contribuinte seja surpreendido por uma alteração nas alíquotas, o que, segundo o secretário, não ocorreu nesse caso.
“No caso o contribuinte não foi surpreendido. Houve uma publicação, pessoal estava indo para a ceia de Ano Novo com um patamar tributário quando saiu no dia seguinte continuava o mesmo patamar porque essa redução foi cancelada já no dia 1º de janeiro. Quem foi surpreendido foi a nova administração”, afirmou.