O diferencial de alíquota (difal) de ICMS em operações envolvendo mercadoria destinada a consumidor final não contribuinte do imposto localizado em outro estado pode ser cobrado regularmente em 2022. Esse é o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em voto apresentado nesta sexta-feira (23/9) no julgamento das três ações que discutem a cobrança do diferencial. Os processos são as ADIs 7066, 7070 e 7078.
O difal foi regulamentado pela Lei Complementar 190/22, publicada em 5/1/22. Desde então, estados e contribuintes divergem sobre o início dos seus efeitos, se em 2022 ou em 2023. Em seu voto, Moraes concluiu que a LC 190/22 não instituiu ou majorou tributo e, portanto, não precisa observar as anterioridades nonagesimal e anual. Portanto, a cobrança pode ser realizada já no exercício de 2022.
Estados analisam, no entanto, se, caso a posição do relator prevaleça, o difal poderá ser cobrado a partir de 2 de março ou 1º de abril de 2022. Isso porque, em seu voto, Moraes entendeu que é constitucional o dispositivo segundo o qual as novas definições de contribuinte, local e momento do fato gerador do difal podem produzir efeitos no primeiro dia útil ao terceiro mês subsequente ao da disponibilização do portal do difal. Trata-se do artigo 24-A, parágrafo quarto, da Lei Kandir (LC 87/96), incluído pela LC 190/2022.
Essa disposição traz outra questão de ordem prática. O portal do Difal foi instituído em 29 de dezembro de 2021, com base no Convênio 235/21, publicado na mesma data. O problema é que esse convênio só produziu efeitos a partir de 1º de janeiro de 2022. Assim, alguns estados, como Santa Catarina, entendem que deve ser considerada a data de instituição do portal, ainda em dezembro, fazendo com que o difal possa ser cobrado a partir de 2 de março de 2022 (já que 1º de março não foi útil). Outras análises, sobretudo dos contribuintes, defendem a data de 1º de abril para o início da cobrança. O tema, provavelmente, será objeto de embargos de declaração no STF.
Entenda o caso
O difal de ICMS discutido nas ações é cobrado em operações envolvendo mercadoria destinada a consumidor final não contribuinte do imposto em outro estado. Nessa modalidade de cobrança, a exemplo do que ocorre no comércio eletrônico, o fornecedor do bem ou serviço é responsável por recolher todo o imposto e repassar ao estado do consumidor final o difal de ICMS – isto é, a diferença entre a alíquota interna do estado de origem e a alíquota interestadual.
A possibilidade de se cobrar esse diferencial foi introduzida na Constituição pela Emenda Constitucional (EC) 87/15 e depois regulamentada pelo Convênio Confaz 93/15. Em 2021, no entanto, o STF declarou inconstitucionais cláusulas desse convênio e decidiu que, a partir de 1º de janeiro de 2022, o tema deveria estar regulamentado por meio de lei complementar, o que foi realizado por meio da LC 190/22.
O problema é que a lei complementar só foi publicada em 5 de janeiro de 2022. Com isso, desde a sua edição, começou o debate sobre o início dos efeitos da norma, se em 2022 ou em 2023, diante dos princípios constitucionais das anterioridades nonagesimal e anual.
Pela anterioridade nonagesimal, é vedado aos estados cobrar tributos antes de decorridos 90 dias da data de publicação da lei que os instituiu ou aumentou. Pela anterioridade anual, essa cobrança não pode ser realizada no mesmo exercício financeiro da publicação da lei que institui ou aumenta os tributos.
Argumentos do relator
Quanto às anterioridades, Moraes entendeu que a LC 190/22 não institui ou majora tributo e, portanto, não precisa observar as anterioridades nonagesimal e anual para produzir efeitos. Para Moraes, a lei complementar não modificou a carga tributária suportada pelos contribuintes, a hipótese de incidência ou a base de cálculo do ICMS. Ela apenas alterou a destinação do produto da arrecadação, de modo a transferir parte da receita para o estado de destino da mercadoria. Com isso, o relator julgou improcedente o pedido da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), para a qual o difal só poderia ser cobrado a partir de 2023.
Na esteira do mesmo entendimento, Moraes acolheu pedido dos estados do Ceará e de Alagoas para declarar a inconstitucionalidade da parte do artigo 3º da LC 190/22 que faz referência expressa ao artigo 150, inciso III, alínea c, da Constituição. Esse dispositivo constitucional prevê o respeito à anterioridade nonagesimal e também define que deve ser observado o disposto na alínea b. Esta, por sua vez, trata da anterioridade anual.
Para Moraes, ao discutir a matéria, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal partiram da premissa “equivocada” de que a cobrança do difal nas operações envolvendo consumidor final não contribuinte do ICMS constituiria majoração de tributo.
Por fim, para reconhecer a constitucionalidade do dispositivo que prevê um prazo para novas definições do difal entrarem em vigor, a partir da disponibilização do portal do difal, o relator afirmou que, embora essa regra se caracterize como óbice ao início imediato da cobrança do difal, trata-se do legítimo exercício da liberdade do legislador, “que estabeleceu um lapso de tempo razoável para permitir a adaptação tecnológica do contribuinte”.
Assim, na prática, Moraes julgou improcedente a ADI 7066, de autoria da Abimaq; parcialmente procedente a ADI 7070, de Alagoas; e procedente a ADI 7078, do Ceará.
Para advogados, voto de Moraes contraria entendimento do próprio STF
Para o advogado Saul Tourinho Leal, sócio do escritório Ayres Britto, o voto de Moraes contraria entendimento do STF no julgamento conjunto da ADI 5469 e do RE 128019, em 2021. Neste julgamento, o Supremo decidiu que os estados não poderiam cobrar o difal de ICMS na ausência de uma lei complementar que regulasse o tema. Na ocasião, os magistrados concluíram que a EC 87/15, ao instituir o difal, criou uma nova relação jurídico-tributária e que, portanto, deveria haver regulamentação por meio de lei complementar.
Já no Congresso Nacional, afirma Tourinho Leal, os parlamentares concluíram pela necessidade de a lei complementar respeitar as anterioridades. Além disso, pareceres como o da Advocacia-Geral da União (AGU) concluíram pela aplicação do princípio da anterioridade anual à Lei Complementar 190/2022. Alternativamente, pela observância pelo menos da noventena, em atendimento à escolha realizada pelo legislador, opção esta considerada inconstitucional por Moraes.
“Para nós, não há qualquer fundamento que indique que o artigo 3ª da LC 192/22 [que define a observância de dispositivo constitucional referente às anterioridades] viole a Constituição. O comando é claro: define a observância tanto da anterioridade nonagesimal quanto da geral (anual). O legislador entendeu por bem proteger o contribuinte. Causa espécie Moraes entender que o Congresso abusou da sua prerrogativa ou que não pode aperfeiçoar direitos dos contribuintes”, afirma Tourinho Leal, que na ADI 7066 realizou sustentação oral em nome da Abimaq.
Para Thiago Motta, sócio do Castro Barros Advogados, o voto de Moraes é manifestamente contrário aos comandos constitucionais que, como garantia dos contribuintes, impedem que os estados exijam o aumento do ICMS no mesmo exercício financeiro em que publicada a lei o instituiu. No entendimento do advogado, a LC 190/22, por determinação do STF, cumpriu o papel de instituir o difal de ICMS. Ele critica ainda o fato de o relator declarar a inconstitucionalidade justamente de parte do dispositivo que definia expressamente a observância das anterioridades, no caso o artigo 3º da LC 190/22. A seu ver, essa disposição deveria servir de salvaguarda dos interesses dos contribuintes. “Um golpe nos contribuintes de difal e, sobretudo, na Constituição da República”, critica Motta.
Até agora, o relator foi o único a votar. O prazo para apresentação de votos vai até as 23h59 da próxima sexta-feira (30/9). Até lá, algum ministro pode pedir vista ou destaque. Neste último caso, o julgamento será levado ao plenário físico, e a contagem de votos, reiniciada.