No dia 7 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o julgamento de uma controvérsia antiga entre a Vale e a União sobre a tributação do lucro de coligadas e controladas da empresa no exterior. O caso foi para a Suprema Corte há uma década através de um recurso da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) favorável à mineradora, e, em 2024, foram dados os primeiros votos no plenário virtual da Corte. Os ministros André Mendonça, relator do processo, e Gilmar Mendes divergiram. O próximo a votar será o ministro Alexandre de Moraes, que havia pedido vista do caso.
O tema não tem repercussão geral reconhecida, ou seja, a sua observância não é obrigatória pelas demais instâncias do Judiciário ou pela esfera administrativa. Entretanto, o governo acompanha o caso de perto, não só pelo precedente relevante que será formado a partir do julgamento, mas também porque um resultado favorável à Vale, a depender da redação, pode abrir espaço para que a companhia tente recuperar R$ 32 bilhões relacionados à tese que foram parcelados pela estatal.
Apesar de ser parte do tema no STF, a Vale tem tributado o lucro das controladas no Brasil, como se não houvesse tratados para evitar a bitributação. Os valores relacionados aos processos da companhia sobre o tema, incluindo o discutido no STF, foram incluídos em um refis. Por outro lado, outras companhias continuam não tributando o lucro das controladas e coligadas com base nos tratados, e recebem autuações recorrentes. É o caso da Petrobrás, que possui um contencioso considerável relacionado ao assunto.
No processo no STF, a Vale quer afastar a incidência automática do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) sobre o resultado de coligadas e controladas da empresa na Bélgica, na Dinamarca e em Luxemburgo. Assim, a mineradora evitaria a dupla tributação. O processo ocorre quando a mesma atividade de um contribuinte é tributada por dois países diferentes.
Se o Supremo reconhecer a inconstitucionalidade da incidência do tributo, o impacto econômico-financeiro para a União deve ser de R$ 22 bilhões, segundo o Projeto de Lei Orçamentária 2025.
O Brasil é signatário de uma série de acordos internacionais para evitar a dupla tributação. Ao votar no caso, Mendonça enfatizou esses tratados. Ele considerou que os acordos devem ser priorizados em relação à legislação doméstica quando há conflito. A posição do ministro considera o que determina o artigo 98 do Código Tributário Nacional (CTN), lei anterior à Constituição, de 1966.
Já Gilmar Mendes deu razão ao governo. O decano defende que a tributação em questão tem como alvo a renda auferida pela controladora brasileira por meio de seu investimento, e não o lucro da subsidiária diretamente.
STJ x Carf
Em 2014, o STJ decidiu o tema favoravelmente à Vale. À época, o tribunal manifestou o entendimento de que os tratados de dupla tributação celebrados com o Brasil prevalecem sobre a legislação interna. A Corte entendeu que deve imperar o artigo 7º do acordo modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A normativa estabelece que esses lucros só podem ser tributados no país de origem.
Contrária à decisão do STJ, a PGFN levou o caso ao Supremo com o Recurso Extraordinário (RE) 870.214. Para o governo, a decisão do tribunal vai de encontro a precedentes do STF que embasam a possibilidade de tributação dos lucros de controladas no exterior. A Corte já considerou constitucional a dupla tributação da empresa de compressores Embraco no julgamento do RE 541.090, em 2007. A decisão seguia a premissa de que a renda é da empresa brasileira, e não da estrangeira.
A tese da PGFN no caso parte de argumento similar. A União defende que o lucro é da controladora com sede no Brasil, independentemente de os valores terem sido distribuídos, e não da controlada nos países europeus. Dessa forma, as regras dos tratados internacionais não se aplicariam.
A posição do governo também tem amparo em decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Em de 2019, por exemplo, o tribunal manteve uma autuação fiscal de R$ 1,7 bilhão contra a Petrobras.
O Supremo também já havia tratado do tema, no início de 2014, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.588, um processo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) contra a dupla tributação. Não houve maioria para uma solução definitiva. Por voto médio, permaneceu a presunção de constitucionalidade do artigo 74 da Medida Provisória (MP) 2.158-35. A normativa estabelecia uma tributação mais rigorosa e antecipada para lucros de controladas e coligadas no exterior. O artigo foi revogado em maio do mesmo ano pela então presidente Dilma Rousseff (PT).
Agora, o julgamento do caso da Vale no STF pode trazer uma solução definitiva para o tema, avaliam especialistas. “É uma oportunidade de assentar qual é a posição dos tratados internacionais contra a dupla tributação da renda assinados pelo Brasil frente ao ordenamento jurídico interno, definir qual o caráter que ele adquire”, afirma a advogada tributarista Raquel Andrade, doutora em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).
Para o tributarista Igor Mauler Santiago, do escritório Mauler Advogados, o julgamento merece atenção porque trata de um contexto em que uma empresa brasileira está em uma posição de investidor no exterior, oposta à usual condição do país como recebedor de capital estrangeiro. Segundo o advogado, está em jogo “como o Brasil, como um exportador de capital, vai incentivar as empresas brasileiras a crescerem, se internacionalizarem”. O STF deve responder qual a segurança jurídica e o tratamento fiscal que as empresas têm nesse tipo de situação, diz ele. “É um julgamento da importância estratégia de ampliação da presença econômica do Brasil no cenário internacional”, afirma.
Para a União, a pertinência do processo também é clara. A tributação, com a incidência da CSLL e do IRPJ, sobre o lucro de coligadas e controladas da empresa no exterior foi objeto do edital de adesão à transação no contencioso tributário em 2023. Também no ano passado, segundo a Fazenda Nacional, existiam 200 processos em andamento envolvendo a conformidade entre a regra brasileira e os tratados para evitar a dupla tributação.
O voto de André Mendonça foi melhor recebido por tributaristas entrevistados pelo JOTA , que consideraram o texto do ministro alinhado com as boas práticas de tributação. Há um receio de que o país possa minar o seu comprometimento com os acordos internacionais, se a maioria dos outros nove ministros da Corte seguirem a interpretação de Gilmar Mendes.
“Seria um tiro no pé”, afirma o advogado tributarista Alexandre Salles Steil, sócio do Lavocat Advogados. “Poderiam até ter repercussões diplomáticas, mas acho que o maior prejuízo seria o que o país poderia causar a ele próprio”.
Os advogados avaliam que adotar a dupla tributação pode colocar as empresas brasileiras em desvantagem, além de levar à evasão fiscal pelo desestímulo do investimento estrangeiro no país e comprometer a reputação do Brasil frente à comunidade internacional pelo descumprimento dos tratados.
“A expectativa é de que, no final das contas, prevaleça a sensatez de que temos que estar em linha com as legislações internacionais. Precisamos estar em linha com as melhores práticas e afastar alguns excessos que a situação da Vale mostrou com relação à tributação”, declara Steil.
Entenda o voto de André Mendonça
O primeiro voto no Supremo, do relator André Mendonça, seguiu entendimento favorável à Vale, similar ao do STJ. O ministro defendeu a manutenção da validade dos tratados internacionais e a priorização deles sobre a legislação nacional em casos de conflito, conforme o artigo 98 do CTN. Leia a íntegra do voto de André Mendonça.
Mendonça também defendeu que o método de equivalência patrimonial para tributar lucros estrangeiros não foi criado para fins fiscais. Segundo o ministro, esse objetivo seria uma distorção da intenção original do método, que é refletir o valor econômico dos investimentos nas demonstrações financeiras.
O método, também conhecido pela sigla MEP, é uma técnica contábil utilizada em coligadas e controladas para avaliar e registrar o valor de um investimento de uma empresa em outra. A conta ajusta a quantia no balanço patrimonial de acordo com a participação da empresa investidora no patrimônio líquido da investida.
Mendonça afirma, em seu voto, que o MEP não altera a base de cálculo de avaliação das empresas estrangeiras em relação ao patrimônio da matriz no Brasil. Ele é neutro quanto ao lucro real tributável pelo IRPJ e pela CSLL, já que desconsidera fatores como variação cambial no exterior e mudanças patrimoniais das controladas. Assim, a legislação brasileira foca exclusivamente na tributação do lucro, respeitando os acordos internacionais bilaterais firmados com os três países analisados no caso.
“Improcedem os argumentos trazidos no sentido de que o lucro da controlada estrangeira repercute como lucro próprio da controladora investidora, em razão da parcela positiva do investimento, conforme o método de equivalência patrimonial. A lei brasileira (art. 74) jamais tributou o ajuste positivo de equivalência patrimonial, mas a mera adição de lucros na empresa controladora, indistintamente”, declara o ministro em seu voto.
Mendonça diz ainda que o Brasil atrai investimentos ao pactuar acordos como os da Vale. “Eventual redução na arrecadação da tributação sobre matrizes nacionais compensa-se com o influxo de multinacionais estrangeiras que aqui se instalam”, afirma o ministro.
Para Mendonça, com a dupla tributação, “frustra-se a confiança dos contribuintes que estruturaram suas operações à luz da legislação e da interpretação sobre ela vigentes ao tempo de suas operações”.
Entenda o voto de Gilmar Mendes
O ministro Gilmar Mendes abriu divergência e retomou o entendimento similar ao do seu voto no julgamento da ADI 2.588 – caso da CNI contra dupla tributação. “O aspecto central está na consideração de que o acréscimo patrimonial positivo, decorrente da apuração dos lucros no exterior, é experimentado imediatamente pela sociedade controladora ou coligada, no Brasil, mesmo antes da distribuição dos lucros”, diz Gilmar.
Para o ministro, a discussão não envolve a interpretação ou aplicação de tratados internacionais, porque eles não se aplicariam ao caso específico, já que o imposto cobrado é sobre a renda da empresa brasileira, não da subsidiária estrangeira.
O foco, diz Gilmar, é a análise da compatibilidade do art. 74 da MP 2.158-35 com o conceito de renda. Neste caso, que é tratado no julgamento da Embraco contra a dupla tributação (RE 541.090), o STF já havia declarado que o dispositivo era constitucional em casos em que uma empresa brasileira controla uma estrangeira.
“Aplicando o que decidido pelo Plenário desta Corte no RE 541.090, entendo que o caso é de reconhecer a possibilidade de incidência do IRPJ e da CSLL sobre o lucro da controladora obtido por intermédio de empresas controladas situadas no exterior”, declara Gilmar.
Diferentemente da avaliação de Mendonça, o ministro considera que o método de equivalência patrimonial serve como base legítima para tributação. Ele argumenta que o MEP captura um aumento nos ativos da empresa brasileira, o que constitui “renda” para fins constitucionais. Leia a íntegra do voto de Gilmar Mendes.
A distinção entre os votos se dá, principalmente, porque Mendonça privilegia a adesão a tratados tributários internacionais e uma interpretação de renda como lucro realizado, enquanto Gilmar Mendes prioriza a legislação doméstica e considera o MEP como um meio justificável de capturar renda antes mesmo da distribuição real do lucro.
Para os especialistas, a posição de Gilmar Mendes já era, de certa forma, esperada por conta do voto que ele havia proferido no caso da CNI.
Mas, em 2011, Gilmar Mendes teve uma perspectiva diferente sobre as convenções internacionais quando confrontadas com a legislação nacional. No RE 460.320, em um caso da automotiva Volvo contra a União, o ministro defendeu que os tratados para evitar dupla tributação prevalecem em face às normas internas, devendo se submeter somente à Constituição.
“O problema entre os casos Vale e Volvo é que um voto não conversa com o outro. No caso Vale, ele simplesmente analisa como se estivesse avaliando só a compatibilidade do 74 da MP. 2158-35 com a Constituição. E, na verdade, tem a questão dos tratados. Essa é uma questão só, não se pode dissociar uma parte dos fatos”, afirma a especialista em Direito Financeiro Raquel Andrade.
O tributarista Igor Mauler diz que o ministro se equivoca na tentativa de afastar os tratados no caso Vale. “Para permitir a tributação integral mesmo quando haja tratado, ele está afastando a aplicabilidade do tratado dizendo que o que se está tributando na empresa brasileira não é o lucro da outra, é o lucro dela mesma decorrente da equivalência patrimonial. Mas aí está o equívoco, porque a lei brasileira nunca autorizou a tributação de resultado de equivalência patrimonial”, avalia Mauler.
Para Alexandre Salles Steil, o voto de Gilmar ainda está “preso” ao julgamento do caso da CNI, que tem como foco o artigo 74 da MP sobre tributação. Neste julgamento, os tratados e o artigo 98 da CNT assumem caráter de maior importância, avalia. “Quando eu tenho esses acordos internacionais, como é o caso, é preciso sair dessa discussão pura do que é o artigo 74 da MP para uma discussão mais específica sobre os tratados”, afirma.
Discussão constitucional?
Também há discussão se o caso deveria, de fato, ser julgado pelo Supremo. O ministro André Mendonça diz reconhecer argumentos que destacam a importância do tema no contexto supranacional, o que poderia levar o debate para a esfera constitucional, mas considera, no voto, que o tema “se restringe a um debate eminentemente infraconstitucional”. Já Gilmar Mendes se ampara nas discussões anteriores sobre a dupla tributação levadas à Corte para atestar que há uma questão constitucional a ser debatida no caso.
O advogado Igor Mauler considera que estabelecer se a dupla tributação é ou não constitucional é o grande ponto do que está em jogo. Para ele, tributar é uma violação ao conceito de renda. “Esse é um conceito constitucional. A renda é sempre de alguém. A renda é um conceito ligado a uma pessoa. Eu tributo a renda no dono da renda, no titular da renda, eu não tributo a renda num terceiro. A renda é sua, mas vai tributar em mim. Por que?”, questiona. “Eu penso que não existe autorização constitucional para se quebrar essa autonomia das pessoas jurídicas”, afirma o tributarista.
Mas Mauler defende a palavra final do STJ. “No caso a caso, eu vou ter que ver se aquela controlada está ou não num país com o qual o Brasil tem tratado. Esse efeito e essa relação da lei com o tratado é competência do STJ. E acho que o STJ fez exatamente o que deveria ter feito”, afirma.
Para a tributarista Raquel de Andrade, a decisão do STJ não basta. A questão precisa passar pelo STF, já que é o artigo 98 do CTN que trata da relação dos tratados com a legislação doméstica. A lei que inclui o dispositivo é de 1966. A Constituição só foi promulgada cerca de 20 anos depois. “Isso está mal resolvido e, até hoje, o STF não disse, categoricamente, qual é a interpretação que se deve ter do artigo 98 à luz da Constituição”, diz.